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segunda-feira, agosto 29, 2016

Insensibilidades

O despertador do celular toca embaixo do travesseiro. Rafael acorda ainda aborrecido. Os olhos contrariados, marejando de uma vermelhidão dolorida. Mais um dia de luta. Mais um dia mal dormido. Joga água fria na cara, não adianta muito. Cai no chuveiro. Banho frio. Há poucos meses conseguiu um emprego temporário no serviço público, depois de dedicar horas  e mais horas estudando madrugada adentro, para garantir a sua participação na renda da família. O dinheiro arrecadado dura apenas trinta dias. Sem chances para economias substanciais e gastos frívolos. Trabalhador temporário dorme e acorda pensando em ampulhetas e no que virá depois, com muitas imaginações compulsivas sobre infortúnios. Nem o mínimo lazer escapa dos sentimentos de austeridade.
A mãe de Rafael, nesse adiantado da hora, já deixou a mesa do café pronta para chegar ao trabalho a tempo de deixar outra mesa pronta num bairro próspero e arborizado. Rafael toma o café com um olho no pão e outro no relógio. São seis da manhã. Dormiu às duas estudando para as provas de concurso que forem eventualmente aparecendo. As provas estão cada vez mais escassas. O novo "governo" resolveu cortar gastos na carne, como eles falam, para fazer o tal do superávit primário. É preciso pagar juros no prazo aos investidores. Eles não admitem ser afetados por nenhum tipo de corte. Eles ditam as eleições. O pobre que se foda por não saber votar, pensam. O voto não é salvo-conduto, dizem. 
Rafael anda desesperado. O desemprego, empurrado um pouco para o futuro, ainda lhe assombra. Mas, tenta esquecer e sai de casa todo dia às seis da manhã para chegar ao trabalho às oito e bater o ponto. O problema é que Rafael quase sempre chega atrasado. Ele mora na periferia, em uma casa bem distante de qualquer ponto de ônibus. Precisa andar trinta minutos todos os dias até o mais próximo. Na parada espera mais uns minutos até que o coletivo aponte no horizonte. Mas não consegue chegar no horário, mesmo quando o tempo está bom. Quando chove então, tudo vira um inferno com as ruas alagadas e engarrafamentos. Rafael também tem problemas de saúde que lhe afeta a locomoção. Mas ele luta. Teria que sair de casa trinta minutos antes para haver alguma chance de pontualidade. Cinco e meia da manhã. No quarto mês de atraso recebeu uma chamada do seu chefe imediato diante de todos os outros colegas.  

- Por que você chega todos os dias atrasado, Rafael?
- Chefe, eu moro muito longe. O horário do ônibus não me favorece.
- E por que você não sai mais cedo? 
- Chefe, eu já saio muito cedo de casa. O ônibus passa apenas de meia em meia hora. Mas veja que eu sempre compenso os meus atrasos trabalhando até mais tarde.
- Rafael, veja, eu não posso ser conivente com isso. Você está mudando o seu horário de trabalho. 
- Tudo bem. Eu vou fazer o possível...

No outro dia, Rafael chega novamente atrasado e assim continua. Sempre compensando. Para seu alívio, seu chefe deu um descanso e não reagiu durante algum tempo. Parecia ter se sensibilizado com as suas dificuldades. E os dias seguiram com todo o fardo da sua rotina. Por causa da saúde debilitada, Rafael também precisa ir muitas vezes ao médico. Ele acredita que não terá uma vida longa. O olhar é aflito. A cabeça vive pensativa. Pensamentos de quem quer viver um pouco mais sossegado. Mas Rafael se porta como um resignado, como uma fortaleza que resiste, acanhada, às pancadas diárias de ondas gigantes que aparecem subitamente com o avanço do mar. A doença avança impetuosa, mas ele segue com um humor invejável na maior parte das vezes, assim se fortifica.
Diante de uma dessas idas ao médico, seu chefe resolveu tirar uma dúvida com segundas intenções. 

- Rafael, que horas é seu médico amanhã? - Fala diante de todos do setor.
- Seis e meia, chefe.
- Você não consegue chegar aqui às oito e tem médico nesse horário amanhã? - Ri sarcasticamente.
- Mas é uma situação diferente, chefe. 
- Você sairá que horas de casa amanhã? 
- Quatro e meia, chefe. 
- Então por que você não acorda nesse horário para vir trabalhar?
- [...]
- [...]
- [...]