Mãe, Salvador é grande? É. Tem cinema lá? Tem também. E praia? Você vai enjoar de tanto mar, meu filho. E foi, fazendo perguntas. Subiram no ônibus intermunicipal pela primeira vez, radiando alegria porque iria morar na capital e descobrir um novo mundo que tinha tudo o que ele queria, segundo suas fantasias fomentadas pela Nova York, Paris, Londres dos blockbusters daquela velha locadora de Seu Tobias. Entediou-se de um mundo inteiro ausente naquela pequena urbe que só tinha poeira, mato, boi, religião, vaca, cavalo, apenas a mudança já era uma estupenda façanha homérica. Não que fosse ruim, o vilarejo, apenas seus desejos cobiçavam o que ali jamais teve. Bagagens pesadas. Doze horas de viagem na longa madrugada. Chegariam nas primeiras luzes do sol ao litoral. Em todo o percurso, mãozinhas apoiadas na janela, olhar ensimesmado na paisagem transeunte, pensamento universal. Era a água salgada banhando o peito ambicioso, a tela imensa da sala escura oferecendo-lhe um axé em animação, camiseta do Olodum e a mamãe-sacode numa mão, as livrarias, sorveterias, acarajé. No trajeto, muitos desejos metropolitanos tomavam forma na fértil cabeça rural de um recém adolescente um tanto insone. Era ansiedade. Sua mãe em desencanto - se afastava da família pela segunda vez - já roncava uma hora após o movimento dos pneus. As horas passam. Vem o crepúsculo e também a penúltima parada. Pessoas despertam, esticam as pernas, saem para tomar o primeiro café. Eles ficam. Todos voltam, um senhor senta logo atrás. O ônibus começa a se mover precocemente. Falta um! O senhor levanta, pede para esperar, o motorista acata. Explica, procuram por uns trinta minutos. Voltam. Continua faltando um. O senhor, caboclo, olhos marejados, com o peso de quem deu toda uma vida pelo amor da sua família, não encontra o único filho que subitamente desapareceu. Ele também viaja pela primeira vez, motivado pelo tratamento de saúde inadiável desse filho, naquela capital que nunca lhe deu nada, exceto essa esperança.
"Mas eu preciso acha-lo, é meu filho, ele tem problema de saúde, meu senhor. Pelo amor de Deus."
Voz embargada, baixa, é um simples sertanejo, índio. Os passageiros lamentam.
"Ele pode ter subido num ônibus errado, senhor, e ninguém percebeu... Infelizmente, precisamos continuar a viagem. O senhor pode ficar e dar queixa, mas pode também continuar conosco, ele parece não estar aqui. Podemos encontrá-lo na rodoviária de Salvador, de repente".
Os passageiros concordam, cansados, só queriam chegar em casa em seus horários. Ele não sabe bem o que fazer, há pouco dinheiro no bolso. A angústia lhe toma o corpo. Cede. Ele se conforma na poltrona em um silêncio ensurdecedor. Medo. Está atrás de mim. Os meus desejos outrora alegres transfiguram-se numa agonia solidária, nessa circunstância tão lúgubre. Eu, tão ingênuo, sem saber o que fazer, dizer, sentir. Uma empatia profunda me aperta o coração. É um sufoco no vazio, uma impotência na inexistência dos heróis. Ouço os primeiros sinais de um pranto baixinho que se rompe no calafrio da indiferença alheia. Ele reza discreto, com vergonha de incomodar. Escuto um fado de pássaro selvagem, cortante. Um barulho de embarcação furada sem nenhum porto seguro a vista. Uma areia que se move para baixo, causando insegurança aos pés que andam. Um vulcão que arde invisível, sem causar nenhum espanto. Uma nuvem pesada com trovões tão longínquos, mas que tanto dizem. E a paisagem que passa na janela, cada vez mais rápida, nada mais significa, no olhar meu e daquele homem, também perdido porque perdeu. A viagem segue, o sol já aparece no horizonte, provocando-me o receio vil de que não seja para todos. Chegamos. A cidade que nos adentra, numa paisagem paradoxal de vidas harmonicamente amontoadas, Salvador, deu-me como primeiro presente ingrato esse mistério, essa dor enigmática do qual nunca saberei a solução. Eu nem sei seu nome. Apesar de tudo, desenvolveu em mim, já cedo, a sensibilidade por ter visto a dor do outro em forma pura, tão próxima, em seu aspecto mais sombrio. O desencontro. Vivi toda essa vida - e sigo vivendo - com a mente apertada, as lágrimas daquele senhor silencioso me tocaram profundamente. E ainda tocam, num sentimento primordial que não me diz respeito, ou diz muito, ainda creio: que ele tenha se reencontrado porque reencontrou, seu único filho, naquele dia. É um desejo em mim que nunca saberei se foi realizado.