Apartamento novo. Não, é alugado. Alugado de um aposentado solitário, simpático, espírito paternal. "Eu vou com a sua cara", disse enquanto me oferecia um café no primeiro encontro. Sem contrato, verbal, bom valor, algo cada vez mais raro num mundo cedido a crescentes desconfianças. Não é para menos. Meses atrás, um amigo havia me alertado, após um aborrecimento conjugal meu, em pleno carnaval: "hoje em dia, cara, temos que ter calma, saber o que diz, como diz. As pessoas estão cada vez mais intolerantes". Ele falava sobre amantes, não de pessoas que negociavam aluguel. Não sei bem porque lembro disso, mas sempre me martela. Como um alarme interno, vital, soa estridente toda vez que algo me parece fora da normalidade nos diálogos que estabeleço, ainda mais os íntimos. A fala desse amigo ficou tatuada em mim como entalhe artístico na madeira, parecia dotado de extremo xamanismo... de uma boa dose de sentimento do mundo.
Começou a preencher o novo apê, "velho apê", com os pertences do outro. Uma cama, um sofá, uma lavadora, um hack, livros, uma escrivaninha, uma mesa, uma televisão, um tapete japonês. Era tudo. Era apenas isso mesmo. Retira das duas malas os porta-retratos vindos em cima das próprias roupas, indiciando alguma hierarquia inconsciente dos objetos. Imagens de viagens amorosas do casal. Pensa onde pregá-las em um novo arranjo decorativo. As roupas ainda na bagagem. O apê, olhando bem, comparando, é bem maior. Tão maior que percebeu não ter acumulado quase nada no outro, enganou-se. Agora, muitos espaços vazios, sentiu. Dois quartos sem qualquer mobília, a voz ecoando, por ora destinados a depósitos de coisas secundárias. O outro, além de mal localizado para os pequenos burgueses locais metidos à besta - tautologia? -, era, talvez, a metade deste. Apesar disso, tudo era mais preenchido antes. Era como qualquer outro, cheio de móveis embutidos, aliviava a imagem austera e ecoada deste novo. Pensou nos detalhes, como preencher as lacunas. "Já sei!", pensou. Saiu para comprar plantas, antes mesmo que ela, Alice, chegasse do seu novo trabalho. Muito legal o novo trabalho dela, está lidando com muitas pessoas aparentemente interessantes. Mercado de artes. Estou muito feliz por ela, gosta muito do que faz, e vice-versa. Depois descobri que esse vice-versa seria um problema na minha vida. Workaholic.
Uma pequena surpresa valia à pena nessa transição amorosa. Vamos morar juntos pela primeira vez - esqueci de te dizer, leitor(a). Escolheu algumas plantas de médio porte para a sala e colocou-as na entrada para a varanda, uma de cada lado, ao lado do sofá. "Ela vai gostar. Mais verde", mais isso, mais aquilo. À noite ela chega visivelmente cansada. Deita no sofá, conversa um pouco, reticente, zapeia canais e logo adormece, nem janta. O sol gira algumas vezes sobre nossas cabeças, umas sete talvez. O cansaço permanece. As conversas arrefecem. A convicção desaparece. As impaciências se fortalecem. Senti que já não tinha mais certeza do que queria - ela comigo. Desde então muita coisa mudou, ou deixou de acontecer, misteriosamente. Ela nem percebeu as novas plantas, também não falei nada. Mas senti muito por aquilo, em silêncio angustiante, por dias. Era cansaço, dizia. Depois eu mesmo desaparecendo aos poucos. Cada vez menos visível e copartícipe naquela vida feliz, dela, e que eu achava que também seria minha. Workaholic. Cansaço de mim também, talvez, será?
Nunca pensei, logo após um mar de empolgação mútua, da mudança, da nova união, que a alegria ficaria apenas do lado de fora, distante de mim, em fotos outras, com outros, em sua maioria desconhecidos de mim. Workaholic. O sol girou sobre mim mais algumas vezes, cada vez mais sozinho. Para o vencedor, eu, as batatas. Nem isso. Depois do seu pedido, o telefone tocava menos, e piorava. Os quadros na parede desbotavam - prenúncio. Apocalipse. As conversas reduzidas, antes eram duas horas de carícias e promessas, agora não passavam de quinze minutos quando muito, minhas orelhas não mais esquentavam. Isso me incomodava, mas começava a sentir falta. Como você está? Estou bem. Hoje vou demorar no trabalho, acho que dormirei na casa dos meus pais, é caminho, amanhã a gente se vê naquele bar, tudo bem? Tudo bem, amor, até amanhã. Workaholic. Teve que cancelar. Um dia, não a vi mais. Mistério mais virtuoso que os confins do universo. O telefone nunca mais vibrou. Fomos apartados pelo quê, soturno, eu nunca soube. Comecei a desfazer tudo com o coração na mão, que já me olhava constrangido, pedindo desculpas. Mas resolvi seguir adiante, eu, meus porta-retratos desbotados, as minhas plantas ressecadas e as minhas roupas amassadas. "O não-pedido de casamento", na voz vacilante de Amarante, toca baixinho na rádio enquanto fecho as malas atulhadas de memórias. Batem à porta.
Começou a preencher o novo apê, "velho apê", com os pertences do outro. Uma cama, um sofá, uma lavadora, um hack, livros, uma escrivaninha, uma mesa, uma televisão, um tapete japonês. Era tudo. Era apenas isso mesmo. Retira das duas malas os porta-retratos vindos em cima das próprias roupas, indiciando alguma hierarquia inconsciente dos objetos. Imagens de viagens amorosas do casal. Pensa onde pregá-las em um novo arranjo decorativo. As roupas ainda na bagagem. O apê, olhando bem, comparando, é bem maior. Tão maior que percebeu não ter acumulado quase nada no outro, enganou-se. Agora, muitos espaços vazios, sentiu. Dois quartos sem qualquer mobília, a voz ecoando, por ora destinados a depósitos de coisas secundárias. O outro, além de mal localizado para os pequenos burgueses locais metidos à besta - tautologia? -, era, talvez, a metade deste. Apesar disso, tudo era mais preenchido antes. Era como qualquer outro, cheio de móveis embutidos, aliviava a imagem austera e ecoada deste novo. Pensou nos detalhes, como preencher as lacunas. "Já sei!", pensou. Saiu para comprar plantas, antes mesmo que ela, Alice, chegasse do seu novo trabalho. Muito legal o novo trabalho dela, está lidando com muitas pessoas aparentemente interessantes. Mercado de artes. Estou muito feliz por ela, gosta muito do que faz, e vice-versa. Depois descobri que esse vice-versa seria um problema na minha vida. Workaholic.
Uma pequena surpresa valia à pena nessa transição amorosa. Vamos morar juntos pela primeira vez - esqueci de te dizer, leitor(a). Escolheu algumas plantas de médio porte para a sala e colocou-as na entrada para a varanda, uma de cada lado, ao lado do sofá. "Ela vai gostar. Mais verde", mais isso, mais aquilo. À noite ela chega visivelmente cansada. Deita no sofá, conversa um pouco, reticente, zapeia canais e logo adormece, nem janta. O sol gira algumas vezes sobre nossas cabeças, umas sete talvez. O cansaço permanece. As conversas arrefecem. A convicção desaparece. As impaciências se fortalecem. Senti que já não tinha mais certeza do que queria - ela comigo. Desde então muita coisa mudou, ou deixou de acontecer, misteriosamente. Ela nem percebeu as novas plantas, também não falei nada. Mas senti muito por aquilo, em silêncio angustiante, por dias. Era cansaço, dizia. Depois eu mesmo desaparecendo aos poucos. Cada vez menos visível e copartícipe naquela vida feliz, dela, e que eu achava que também seria minha. Workaholic. Cansaço de mim também, talvez, será?
Nunca pensei, logo após um mar de empolgação mútua, da mudança, da nova união, que a alegria ficaria apenas do lado de fora, distante de mim, em fotos outras, com outros, em sua maioria desconhecidos de mim. Workaholic. O sol girou sobre mim mais algumas vezes, cada vez mais sozinho. Para o vencedor, eu, as batatas. Nem isso. Depois do seu pedido, o telefone tocava menos, e piorava. Os quadros na parede desbotavam - prenúncio. Apocalipse. As conversas reduzidas, antes eram duas horas de carícias e promessas, agora não passavam de quinze minutos quando muito, minhas orelhas não mais esquentavam. Isso me incomodava, mas começava a sentir falta. Como você está? Estou bem. Hoje vou demorar no trabalho, acho que dormirei na casa dos meus pais, é caminho, amanhã a gente se vê naquele bar, tudo bem? Tudo bem, amor, até amanhã. Workaholic. Teve que cancelar. Um dia, não a vi mais. Mistério mais virtuoso que os confins do universo. O telefone nunca mais vibrou. Fomos apartados pelo quê, soturno, eu nunca soube. Comecei a desfazer tudo com o coração na mão, que já me olhava constrangido, pedindo desculpas. Mas resolvi seguir adiante, eu, meus porta-retratos desbotados, as minhas plantas ressecadas e as minhas roupas amassadas. "O não-pedido de casamento", na voz vacilante de Amarante, toca baixinho na rádio enquanto fecho as malas atulhadas de memórias. Batem à porta.