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sábado, abril 23, 2016

Milagres


   "Pretendo ser cobaia em pesquisas de agências nacionais que já manipulam a máquina catalisadora de relações iniciais simplificadas (a famosa MCRIS). Se você conhece profissionais que já pesquisam essa inovadora engenharia social em nosso país, por favor, mande uma msg inbox". No primeiro dia em exposição na timeline, o número de curtidas desse pedido de ajuda no FB ultrapassou o milhar. Sinal de que havia, provocada pelas corriqueiras notícias internacionais, uma grande demanda reprimida em nosso periférico país. O contexto não é dos melhores. O país, outrora conhecido, pelos incautos, pela sua cordialidade e diplomacia, hoje está convulsionado por antigas fragmentações identitárias artificiosamente disciplinadas em programas estatais baseados em metodologias exclusivas nas ciências humanas. Todos sabiam que essa estratégia não era tão segura assim e estouraria conflitos civis cedo ou tarde. Os diversos indicadores de tolerância monitorados pelas universidades, apesar de um longo período de estabilidade, vêm demonstrando retração em velocidade preocupante. E foi o que aconteceu, estouraram desentendimentos por toda parte. Organismos internacionais, que já vinham monitorando a situação há alguns anos, relançaram sua versão 2.0 do projeto Unesco, desenvolvido no país nos anos cinquenta. Porém, dessa vez, com o auxílio supostamente criterioso das ciências exatas e biológicas e, claro, com a querida MCRIS, capaz de agregar analiticamente os saberes das três grandes áreas numa mecânica exclusiva.
   As notícias que chegavam do primeiro mundo ao eterno país do futuro era de que a máquina obtivera sucessos estrondosos, algo em torno de oitenta por cento de todos os tipos catalogados de primeiro contato humano. Todos georreferenciados. Os cientistas, para comprovar a precisão da máquina logo nos primeiros meses, e a fim de lançar novos serviços para a classe mais alta disposta a pagar milhões pelo "devir quântico", obtendo, assim, um rápido retorno dos altos investimentos, realizaram e divulgaram ao vivo num programa de televisão um experimento entre grupos de identidades radicalmente opostos, os chamados grupos de alteridades radicais. Nessa ocasião, foram expostos às novas e misteriosas partículas quânticas - descobertas na via láctea, flutuando concentradas nas vizinhanças de plutão - um xamã yanomami perspectivista e um polêmico escritor europeu ultranacionalista. Resultado preliminar dos depoimentos coletados logo após saírem da engenhoca: Por incremento, ou seja, numa operação complexa de hibridização de seus antigos atributos, o yanomami, em discurso imediato, deixara de ser contra o Estado após vislumbrar o multinaturalismo deste; O escritor reproduzira um vigoroso discurso xamânico concatenado em bases filosóficas ocidentais. Abraçaram-se e estabeleceram amizade promissora ali mesmo, na frente de todos. A platéia ficara perplexa em determinado instante, porém frustradas ao saberem que o serviço custaria muito caro assim que comercializado. Àquela altura, os passeios a preços populares em ônibus espaciais já não empolgavam tanto. Os desejos estavam todos voltados para essa virtuosa MCRIS, já referida por alguns políticos e cientistas como 'o engenho dos milagres subatômicos'. 
  "Olá, Cristina! Tudo bem? Bom dia. Somos uma das agências nacionais responsáveis por desenvolver pesquisas glocalizadas com a MCRIS, voltadas especialmente para o contexto social da sua região. Sua mensagem chegou até nós por um de nossos colaboradores, logo, gostaríamos de saber se ainda é de seu interesse e disponibilidade participar como voluntária em uma de nossas pesquisas. Se sim, gentileza entrar em nosso site abaixo e preencher o formulário. Após análises e encaminhamentos ao comitê de ética, entraremos em contato para os procedimentos seguintes. Obrigado pela sua atenção! [...]" - recebeu em email. Ela se empolgou e topou de imediato a experiência. Chorou também. Contou para a família e amigos que havia sido aprovada nas preliminares. Comemorou num restaurante perante ávidos jornalistas. Foi entrevistada em todos os jornais locais, regionais e alguns estrangeiros. Ficou famosa em pouquíssimo tempo. Angariou um grande prestígio social. Meses depois, prestes a iniciar o processo final de exposição quântica nos laboratórios da agência, desistiu. Desistiram ao saber, no calor do momento, quem seria seu parceiro na situação. Durante todo o processo eles não tiveram contato entre si para não comprometer os resultados. Para eles, parecia uma armadilha assim que se viram pela primeira vez na sala de pesquisa. O programa era rigoroso com desistências, prevendo multas e impedimentos. Ela o conhecia como ninguém; ele a conhecia como ninguém. Acabaram nas estatísticas dos vinte por cento restantes. E, pouco tempo depois, com suas imagens já frustradas perante o público, ninguém soube mais nada sobre a vida dos dois.