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segunda-feira, março 28, 2016

Justiças

O cachorro lambe seu ouvido. Acorda assustado. O despertador não funciona. Logo após os primeiros respiros e profilaxias, retoma um fluxo de pensamento quase involuntário que ele havia interrompido... Quer dizer... O sono à queima-roupa o interrompeu. Já sem o calor do momento, apenas como uma guisa de conclusão, ele volta, o fluxo. Senta-se à mesa da cozinha olhando vago para os pães, sem pensar se está atrasado para o trabalho. Levanta. Coloca a água para ferver. Senta... Tem muita gente que não sabe a diferença básica entre um fora-da-lei e um fora-da-justiça. Pensa. Constranjo-me pelos que vivem à serviço de odes aos legalismos mecânicos, escassos de idiossincrasias, sem maiores questões. O abismo é profundo e, muitas vezes, inconciliável. Dos primeiros, o predomínio da ousadia - "Liberdade caça jeito", Manoel. Dos segundos, o conformismo - "Esse mundo anárquico sem leis...". Cagadores de regra, em suma. Para os deslocados, a justiça a todos. E todas. Para os adequados, a lei. A lei nos outros, de preferência. Lei feita por mim, junto aos meus, no cu dos outros, sobretudo, é refresco. O primeiro, justicialista. O segundo, legalista. Intuo em mim um atavismo ético e moral nos primeiros, os fora-da-lei. Nestes, os primeiros, o popular. Naqueles, os secundários, o popular também. Sejamos justos. Mas não é coincidência para quem tem olhos de lince, e sabe disso. Victor Jara não teve muitas chances de explicar melhor que ser popular do povo é muito distinto de ser popular do pop. Mataram-no, os fora-da-justiça. Até isso não é nosso, esse tal pop, hedonista, vem lá de cima, não falo de geografia física, dos desejos mais íntimos do colonialista genérico. Ser fora-da-lei até que aceito, mas fora-da-justiça, desculpe-me os incautos e arrogantes de expressões civilizadas falsamente modestas, mas direi nunca, afiado e decidido. A razão é muito simples: antes ser ilegal a ser injusto. Mas, não pensando mais nisso, a sensação mais imperativa é de que resvalo em uma contradição absurda. Limitação é uma coisa séria. Faz o seu café, põe o pão na sanduicheira e lança esse pensamento ao lixo. É para que morra esquecido junto aos restos inorgânicos, incapazes de gerar novas vidas. Quem sabe ele não pare nas boas mãos de quem saiba reciclar inorgânicos... e ideias também. Nunca se sabe. Para que serve a vida mesmo? Veste a sua roupa e sai à rotina de cada dia, aborrecido pelo fato de que por mais um não conseguiu uma solução de pensamento simples para conversar com o seu colega golpista. Tudo bem... O pior mesmo foi saber que saiu de casa tendo apenas tomado o café. O pão ele esqueceu, o pão preso na sanduicheira.