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sexta-feira, junho 23, 2017

Estorvos


Ambiente insalubre, paredes suadas, migalhas pelo chão. Salinha discreta atrás do balcão, velada com um lençol de cama a olhos vistos mofado, obsoleto, oleado. Tudo parece construção. Ruína. Construção-Ruína. Pela fresta, a pequena vítima ali escondida percebia a presença dos transeuntes disseminados, gritando. Gente disputando gente. No gogó. Pulava, a vítima, de um lado a outro, assim passava o tempo como se brincadeira fosse. Era para atenuar. Ali perto, ouviu vozes, sussurros. Alguma coisa ficou fora da ordem.

- Leve-o daqui, agora, recebi um telefonema do chefe – Chegou avisando um menino da feira.
Estava enfezado. Com medo. O chefe é um influente traficante.

- Mandou colocá-lo no caminhão junto com as frutas e voltar para o depósito, urgente. Foi o que ele me disse com uma voz nada boa.

- Eles estão vindo, você não percebe? Feche a venda agora, já! – Avisou o outro menino da feira.

A vítima cantou, assustada, irritando ainda mais as vozes distantes.

- Ele não para de cantar! Vai chamar a atenção, porra!

Telefone toca novamente. O empregado atende.

- Você ainda está aí?! Traga logo, misera! Se cair e me entregar, eu te mato! Vou tomar um prejuízo daqueles! Vou buscar seus filhos lá na...

Desligou na cara.

Ouviu sirenes. Desesperou-se. desligou na cara do chefe.

- Devem estar a um quilômetro ainda, vamos logo, dá tempo!

Ouviu seu canto.

- Cala a boca, porra!

Jogou o lençol mofado, obsoleto e oleado por cima da vítima e saiu aos tropeços.

- Corre! O caminhão está lá no fundo – Avisou o menino da feira.

Tomou às pressas as vielas congestionadas de gritos, cachorros, gatos, lixo. Tropeça novamente e cai. A vítima escapa das mãos. Tudo chacoalha. A vítima bate a cabeça algumas vezes nos gravetos. Machuca. Cai na paredes de ferro que virou chão e fica, agonizando. Canta confuso, sem parar, de dor. As pessoas olham. Levanta – o suposto algoz. Corre. Acomodou-a no caminhão, num espaço vago entre as laranjas. Por um momento, tudo se acalmou.

- Fique em silêncio! Tá com fome? Se ficar quieto, daqui a pouco lhe dou muita comida. Vamos pra casa.

O suposto algoz entrou no caminhão, afobado, deu partida e... não conseguiu sair, foi dedurado por algum filho da puta, pensou. O carro da polícia atravessou na frente. Saem homens armados e dois outros não identificados.

- Desce do caminhão! O quem tem lá atrás, mermão? Tá fugindo de quê? Abra! Eu sei o que tem ali. Tire o lençol da gaiola, agora!

Tirou.

Tremia.

Mesmo naquele calor infernal, já sentia frio, sabia da pena.

- Olhe pra isso, capitão, é uma cacatua! Conseguiu onde?! Ia vender por quanto, rapaz?!

- Oito mil, senhor, oito mil... Tenho família pra cuidar, não me levem, pelo amor de deus, não me levem...

- Ia levar pra onde, porra?!

- Pra casa, senhor, pra casa... O bicho é meu...

[...]

O empregado foi preso. O chefe saiu ileso. A cacatua... A cacatua foi ao zoológico... Para o zoológico.