- E aí, capitão, onde vai ser a próxima diligência? Esqueça isso,
continue fazendo o seu trabalho como sempre foi.
- Vamos na lanchonete do Mateus. Lá revemos o planejamento. Agora não me
lembro, estou de cabeça quente. Estou cansado de depor contra aqueles merdas e
ser desacreditado. Traficantes de merda! Não vejo a hora de acabar o plantão e
voltar pra casa.
Sempre aparece aquele defensor de cabelinho lambido. Pensa. Que ódio tenho desse cara. Defensor de bandido, isso o que ele é. Se soubesse como aconteceu a diligência não teria falado tanta bobagem na delegacia...
- Capitão...
Aqueles moleques vivem naquela rua traficando para um monte de playboy e patricinha e aquele intelectualzinho de gabinete me vem com desaforo...
Aqueles moleques vivem naquela rua traficando para um monte de playboy e patricinha e aquele intelectualzinho de gabinete me vem com desaforo...
- Capitão...
E ainda tenho que observar as risadinhas cínicas daqueles elementos na frente de todo mundo. Nem medo da polícia esses porras têm mais...
- Capitão!
- Oi! Tava pensando umas coisas aqui... Diga!
- Por onde vamos?
- Prossiga, eu vou te guiando.
Enquanto pensa no ocorrido a viatura percorre as avenidas e ruas da cidade. Lentamente. Giroflex refletindo. Fuzis ostensivos a olhos vistos pela janela. Caras e bocas de quem não está ali para muita conversa fiada. Com ninguém. Nem mesmo com o governador. Caras e bocas de quem queria estar sossegado em casa vendo netflix com a esposa. O emprego, em essência, profundamente indesejável. Todos sentem. Impotentes. Mas têm que pagar as contas. Raríssimos os que estão ali orientados pelo próprio desejo. Mal pagos, mal vistos, mal concebidos em sua própria origem por uma realeza portuguesa atormentada por Napoleão. Olhos no passado e acabaríamos no meio do atlântico, em porões vomitados de uma nau pirata de madeiras enfermas. Quem carregou seres humanos a contragosto nesses porões transmitiram sem saber ao futuro o seu atavismo mais essencial. O pavor da revolta.
A viatura segue para a lanchonete no nordeste de Amaralina. Nessa vereda nervosa, muitas trocas de olhares hostis em becos e botecos, prenunciando uma guerra entre iguais que já não se sabem mais parentes. Algo em que os envolvidos no fundo sabem quem os colocou, em passado remoto, em artificiosa oposição. Uma guerra particular entre inimigos nascidos do mesmo parto.
Enquanto pensa no ocorrido a viatura percorre as avenidas e ruas da cidade. Lentamente. Giroflex refletindo. Fuzis ostensivos a olhos vistos pela janela. Caras e bocas de quem não está ali para muita conversa fiada. Com ninguém. Nem mesmo com o governador. Caras e bocas de quem queria estar sossegado em casa vendo netflix com a esposa. O emprego, em essência, profundamente indesejável. Todos sentem. Impotentes. Mas têm que pagar as contas. Raríssimos os que estão ali orientados pelo próprio desejo. Mal pagos, mal vistos, mal concebidos em sua própria origem por uma realeza portuguesa atormentada por Napoleão. Olhos no passado e acabaríamos no meio do atlântico, em porões vomitados de uma nau pirata de madeiras enfermas. Quem carregou seres humanos a contragosto nesses porões transmitiram sem saber ao futuro o seu atavismo mais essencial. O pavor da revolta.
A viatura segue para a lanchonete no nordeste de Amaralina. Nessa vereda nervosa, muitas trocas de olhares hostis em becos e botecos, prenunciando uma guerra entre iguais que já não se sabem mais parentes. Algo em que os envolvidos no fundo sabem quem os colocou, em passado remoto, em artificiosa oposição. Uma guerra particular entre inimigos nascidos do mesmo parto.
Olhares no boteco. Olhares na viatura.
- Gente direita não frequentaria nunca esses furdunços... Olhem o
estado daquele ali... – afirma
o subcomandante da operação, com o dedo já no gatilho.
- Estudar ninguém quer. Meu filho eu controlo na correia. Depois das sete
eu o proíbo de sair na rua. Ele que me desobedeça...” – replica o cabo.
Nesse mesmo boteco – onde a violência simbólica dos entreolhares vislumbraram uma imaginária neoguerra nuclear, tradicional naquela área portuária, ocorreu uma perseguição implacável décadas antes. Era preciso interromper a força a tendenciosa dos atabaques.
Nesse mesmo boteco – onde a violência simbólica dos entreolhares vislumbraram uma imaginária neoguerra nuclear, tradicional naquela área portuária, ocorreu uma perseguição implacável décadas antes. Era preciso interromper a força a tendenciosa dos atabaques.
***
- Você já viu o filme Zelig? – Perguntou
F.
- Não. É sobre o quê? – Indagou-lhe
V.
- É sobre um homem camaleônico. Ele adotava as características das pessoas
próximas a ele por medo de não ser aceito...
- Ei, rapidinho, veja, eles estão discutindo?
- pshh, Começou tudo de novo...
- É discussão mesmo...
Ele conhecera J e C naquela noite. Enquanto conversavam no veículo, depois da festa, flagraram os dois em uma troca tensa a uns metros à frente. Apenas esperavam por eles para irem embora. Briga de casal. Logo se resolveriam, imaginou enquanto desejava V da cabeça aos pés ali mesmo. No carro. Mas o fato descambou para uma extrema cena de cinema mudo, até J dar as costas a C e sair caminhando pela rua escura, incomunicável. Ela voltou chorando e entrou no carro pedindo a F para convencê-lo a desistir da ideia maluca.
Ele conhecera J e C naquela noite. Enquanto conversavam no veículo, depois da festa, flagraram os dois em uma troca tensa a uns metros à frente. Apenas esperavam por eles para irem embora. Briga de casal. Logo se resolveriam, imaginou enquanto desejava V da cabeça aos pés ali mesmo. No carro. Mas o fato descambou para uma extrema cena de cinema mudo, até J dar as costas a C e sair caminhando pela rua escura, incomunicável. Ela voltou chorando e entrou no carro pedindo a F para convencê-lo a desistir da ideia maluca.
- Ele quer ir pra casa andando, gente, imaginem?! É um
louco! Daqui pra lá são mais de dez quilômetros...
F ainda não entendia nada, mas não se furtou a agir diante daquela angústia.
- V, assuma a direção, eu vou lá conversar um pouco com ele. Faça o seguinte, enquanto caminhamos, siga a gente devagar e esperem, tenham paciência”.
Não teve jeito. Mesmo depois de muita insistência. J estava irredutível e pediu, econômico nas palavras inobstante com um riso indignado nos lábios, que F a levasse logo para casa. Ele saberia se virar. Aquilo não era nada novo para ele. Voltou para o carro. Explicou a situação sentindo-se embargado, em total impotência. E estranhamento. C, num arroubo de fúria, pediu para aproximar o carro. Obedeceu. Ela desceu e esbravejou aos prantos para que J entrasse naquele carro. F se assustou um pouco. Talvez muito. V já ensaiava um choro envergonhado. Ele não atendeu ao pedido, como F já esperava, e seguiu adiante com um olhar terrivelmente rancoroso.
***
- Vamos? Olhei o roteiro. Faremos ronda na pituba novamente. Se eu pego
algum de novo não fica nada! – informou aos seus comandados.
- Seu Mateus, pindura ai! Depois resolvemos. – Deram as costas.
- “Pindura aí... toda vez é isso... – resmungou seu Mateus para a sua
mulher que tricotava ao lado, vigilante a tudo o que se passava.
Transitam pelos becos, os mesmos da chegada. Troca de olhares coléricos. Alguém do boteco ensaia um gesto de paz com a mão para os policiais, por precaução os outros rapazes a detêm, alertando para algo do tipo “tá ficando maluco, porra?”. Metralhadoras em punho. Giroflex ligado. Um suor cai da testa do novato policial – estudante de ciências sociais. Eram quatro homens fortemente armados. Na viatura. Pegam o retorno para a orla. Seguem. Na altura da praça do bairro, ouvem um grito de mulher. Avistam um vulto a menos de um quilometro dali. Faróis agora estão altos para a rápida aproximação. Param a viatura logo atrás do veículo. Saem os soldados com armamento em riste.
Transitam pelos becos, os mesmos da chegada. Troca de olhares coléricos. Alguém do boteco ensaia um gesto de paz com a mão para os policiais, por precaução os outros rapazes a detêm, alertando para algo do tipo “tá ficando maluco, porra?”. Metralhadoras em punho. Giroflex ligado. Um suor cai da testa do novato policial – estudante de ciências sociais. Eram quatro homens fortemente armados. Na viatura. Pegam o retorno para a orla. Seguem. Na altura da praça do bairro, ouvem um grito de mulher. Avistam um vulto a menos de um quilometro dali. Faróis agora estão altos para a rápida aproximação. Param a viatura logo atrás do veículo. Saem os soldados com armamento em riste.
- pqp! Alguém chegou atrás de
nós e não consigo ver quem é! Estão com os faróis altos! – alerta F para V e C.
- Meu Deus, vamos ser assaltados, quem são?
Quem são, F?!...
- Espera um pouco...
- Liga esse carro, liga esse carro! Sai daqui logo, F, pelo amor de
Deus!!
Por pouco F teria tomado essa que seria, certamente, a pior decisão. Numa espiada pela janela F avista dois policiais de preto
em posição de tiro, atrás do poste, do outro lado da rua. Anunciavam algo que ele não conseguia entender. V se desespera cada vez mais. Nunca teve
armas pesadas apontadas para ele, mas nesse momento ficou estranhamente mais
calmo, bem mais calmo. Logo mais aquilo teria um bom fim e J perceberia
finalmente os seus excessos, apesar de não saber o que o provocara tanto desprezo. Colocou as mãos para fora e se identificou. Não sei se lhe ouviram mas
saiu do carro com as mãos para cima enquanto o capitão cercava o carro do outro
lado sem que o percebesse. Um dos soldados lhe revista, fazendo perguntas de script. Do outro lado do carro, V,
com muito medo, já havia dito alguma coisa que deixou enfurecido o capitão. Tudo fica por um triz.
- Eu falei pra você sair do carro, porra! Não
me venha pedir calma! – gritava com ódio enquanto V retrucava na mesma
exigência em seu lugar de cidadã inofensiva.
- Fale baixo que eu não te ofendi, senhor!
– essas coisas.
- Fale baixo uma ova! Bote a mão no capô! Agora!”
O capitão jorrava saliva no rosto da menina, a ponto de saltar seus olhos para fora. F ainda era revistado, do outro lado do veículo. Viu e ouviu calado uma exaltação desnecessária, não tinha muito o que fazer. Aquilo poderia dar merda. E deu.
No impasse intolerante entre os dois o capitão deu voz de prisão para todo mundo.
O capitão jorrava saliva no rosto da menina, a ponto de saltar seus olhos para fora. F ainda era revistado, do outro lado do veículo. Viu e ouviu calado uma exaltação desnecessária, não tinha muito o que fazer. Aquilo poderia dar merda. E deu.
No impasse intolerante entre os dois o capitão deu voz de prisão para todo mundo.
- ...Entendi o que quis dizer. Agora, é melhor você conversar logo com a sua namorada e pedir calma. O capitão está muito nervoso. Pode guardar seus documentos. Converse com ele também. – Alertou a F o novato policial.
- Você pode intervir primeiro? Eu estou com receio...
- Comandante! Comandante! Um momento, comandante. Fale com esse rapaz.
Deixe a moça comigo enquanto isso.
V encarou F aos prantos fragilmente reprimidos, perplexa. Deu pena. Discretamente, F balbuciou a ela pedindo calma enquanto se afastava para uma conversa reservada com o capitão. Apesar de nervoso também, encenou a calma monástica o quanto pôde. O fato de não ter bebido naquela noite também facilitou as coisas. C estava encostada à parede, como se estivesse em estado de choque, olhando para outra direção, imóvel, distante dali. As duas, por um instante, se abraçaram. Alguns minutos depois da conversa o capitão chamou seu subordinado. Fizeram uma roda de conversa distante das meninas.
- Tá vendo esse rapaz? Esse é um homem mesmo!
- apontava para F.
O soldado fez uma cara de quem nada entendeu.
Como mágica, a
voz do capitão voltou ao tom normal embora apresentasse uma sutil transpiração.
Não conseguia esconder certo nervosismo diante dos pares. Apesar disso, buscava,
finalmente, contornar todo o embaraço no qual todos eles estavam metidos.
- Veja bem, rapaz, eu dei voz de prisão a vocês, mas vou voltar atrás e
liberar porque você foi homem pelo modo como tratou a situação... mas você precisa me
garantir umas coisas... Posso pegar seu telefone e endereço?
- Há pouco fizemos uma operação aqui mesmo. Prendemos uns traficantes.
Pensamos que poderiam ser eles no carro, por isso a tensão. Estamos nervosos.”
Contava o soldado enquanto eram anotados os dados de F num pedaço de papel
amassado achado no bolso.
- Compreendo, compreendo. Eu quero pedir
desculpas, elas nunca foram paradas dessa forma pela polícia. É natural que
tenham agido assim. Ficaram com medo. É natural.
- F é o seu nome, não é? Mora há quanto
tempo aqui, F?
- Pouco mais de um ano, capitão, por quê?
-
Nada, não. Está gostando?
-
Sim.
Lá, entre C e V:
Lá, entre C e V:
- Eles estão rindo de quê mesmo? – C pergunta a V, ansiosa por J, que já demorava de aparecer, podendo finalmente acabar com aquilo tudo.
-
Ele deve ter se apresentado aos soldados já, pra
resolver nossa situação... – disse V.
Cá, entre policiais e F:
Cá, entre policiais e F:
- Onde estão meus dois soldados, cabo!? Eles estão demorando...
-
Foram atrás do homem que avistamos
andando, senhor. Aquele sem camisa. Deram ordem para ele parar e ele continuou
andando.
-
Será que aconteceu alguma coisa?
- Vamos lá falar com elas para acalmar a situação, capitão? - Disse F.
- Vamos.
- Vamos lá falar com elas para acalmar a situação, capitão? - Disse F.
- Vamos.
Vagarosamente dissipam a conversa e retornam para explicar a situação. O capitão conversa um pouco com elas, pedindo compreensão pelos seus excessos. C pergunta por J mais de uma vez. Ele diz que está tudo bem. Pede para aguardarem um pouco. Silêncio.
- Capitão...
- Então, acho que tudo não passou de um mal
entendido... Há pouco fizemos uma operação nesse local. Estava com meus homens...
- Capitão...
- ...explicando a F a situação. Quando
isso acontece é preciso realizar...
- Capitão!
- Oi! Diga!
O soldado apontou em direção aos seus colegas que tinham ido em busca de J.
O
capitão empalideceu assim que os avistou. Como quem já soubesse o que tinha acontecido lá longe. A pele do soldado voltou a brilhar. E a pingar.