Assim que abri os olhos, após um sono profundo, e com uma ressaca daquelas, percebi que o sol já tinha cruzado a minha cabeça faz algumas horas.
Nesse dia eu senti o peso insustentável dos ditados populares.
Certa vez ouvi de alguém num encontro de amigos desregrados, um desses que vislumbram o real sentido da vida apenas no trabalho, que nunca devemos permitir que o sol cruze a nossa cabeça enquanto dormimos.
E esse desgraçado me falou isso às três da manhã.
Deveríamos, dizia, pelo bem da humanidade, ou melhor, de nós mesmos, acordar sempre antes ou durante o nascer do sol. E Deus ajuda quem cedo madruga, insistia. E eu perplexo com essa ameaça moral-naturalista universal. De preferência acordar junto com o sol, reforçava ele, como se fosse o pior dos pecados capitais a inobservância desse ato.
Se essa pessoa soubesse o mal que me fez... e o desgraçado havia me dito isso depois da décima segunda cerveja de seissentos, depois do vigésimo LP de discos clássicos da nossa juventude, Rolling Stones, Beatles, Raul, Mutantes, até chegar no tal do Kiss... lick it up! liiick it up! A gente gargalhando com a cena cafona das mulheres na fogueira, aquela maluquice brega dos anos 80, depois o oitavo, nono careta... Ele lá, paradoxalmente sustentando a sua latinha de suco da coca, se achando o saudável ali no meio enquanto eu me perguntava que diabo ele fazia ali com tanto recalque.
No avançar das horas a cerveja passou a não me fazer bem, saí à francesa e voltei pra casa num taxi com ar, balinha, água mineral, lencinhos profiláticos, o motorista todo engomadinho, embrulhado num social semi-barato, cabelo cortadinho, cinco da manhã, português esforçado para aparentar, terço no retrovisor. E falava da sua vida certinha, numa tentativa de puxar assunto com o primeiro freguês daquele dia.
E eu lá, naquele ranço, todo defumado, constrangido, pensando no que ele estaria inferindo do meu fedor denunciador. Mais um jovem perdido pra eu levar pra casa... Tomara que ele não me dê problemas no caminho... Se vomitar no meu carro,... Todo final de semana é isso, acordo cedo pra levar uma legião de vagabundos pra casa... Onde estão os pais dessa criatura?
Será? E o sol nem tinha dado o ar da graça a essa alma trabalhadora.
[...]
Acordei numa ressaca moral daquelas e repensei tudo o que podia. Resolvi arriscar e experimentar. Desde então prometi nunca mais beber, derrapei algumas vezes, mas fui progredindo. Poucos anos depois, entrei para uma igreja do bairro mas achei muito franciscana, fiquei um tempo e mudei para uma outra que defendia a prosperidade como meio real de salvação divina. Não entendia muito bem, mas passei a ler mais sobre o assunto em livros vendidos lá mesmo, nos cultos. Pareciam bons.
Passei o resto dos dias colecionando despertador, trabalhando doze horas, às vezes catorze horas. Ouvindo menos meus velhos vinis. Viajando menos. Fazendo muita coisa menos. Enquanto isso tentava reequilibrar as contas da minha pequena empresa, passei esses anos todos fazendo isso. Minha vida material tinha melhorado parceladamente por conta desses esforços, embora eu não me sentisse dessa maneira. Passei a achar que nesse país nada era muito possível, nem saberia até quando poderia suportar. Tentando entender o motivo de tanta dificuldade nativa, passei a frequentar palestras de especialistas em "quero sair desse país para empreender". Pessoas que tinham encarado o sucesso lá fora mas que, por saudade da família e dos amigos, tinham decidido voltar. Eu acreditei. Lá fora parecia o paraíso em seus discursos.
Enquanto isso, contas, contas e mais contas. Algumas com juros compostos. Eu ficava fulo da vida.
O governo dificulta demais quem quer trabalhar, era um mantra em minha vida que aprendi com outros do mesmo ramo e a mais tempo nessa sina. Apesar disso, passei a correr, andar em filas, celebrar na firma, eventos de negócios e a somar dívidas de consumo, viciosamente. Enfim, tudo isso porque parei de beber. Perdia a hora e a produtividade nessa vida de quem parecia não querer nada dela.
Mas um dia eu me senti cansado, cheguei em casa e de repente me senti mal por me afastar daqueles velhos amigos, fiquei curioso para saber se ainda tinha algum vivo. Quis averiguar o que me diziam no trabalho: que a vida desses bon-vivant é curta.
Liguei primeiro para Hermes. Ele tinha virado professor de uma universidade pública. Além das suas, deu notícias de que os outros também estavam bem, ganhando a vida cada um à sua maneira. Alice tinha até viajado o mundo apresentando seus romances. Quem diria, tinha virado escritora... será que isso dá dinheiro?
Conversa vai, conversa vem, ele lembra de uma festa que terá na casa de Lígia e me convida para revigorarmos a amizade. Titubeei bastante enquanto ele insistia. Pouco depois desligamos o telefone. Ele pediu que pensasse com calma. Lamentou nossa distância, queria realmente saber de mim, embora eu tenha me furtado a lhe revelar minhas escolhas, naquele momento.
Fui tomar um banho bem quente e passei até um pouco da conta, sentindo o som da água quicar em minha cabeça, como se tentasse cavar em mim alguma coisa adormecida. Só voltei à tona porque lembrei. Da conta. Desgraçado, pensei, vai me fazer começar tudo outra vez, espero que agora eles me salvem dessa vida, nem que seja pela última vez.