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terça-feira, março 11, 2008

Overdoses


Aconteceu no mês anterior ao seu aniversário. Haviam lhe dito que este não era um dos melhores momentos para uma pessoa. Ele ainda não entendia dessas coisas profundas da vida, mas foi a primeira vez que descobriu, em sua pele ainda lisa de criança, esta relação com os pontos de luz pingados em formas de figurinhas num restante de céu escuro. Elas guiam as pessoas, revelam os mais escusos indícios de que a vida é feita de escolhas, explicou sua mãe, única que sempre percebia os momentos tristes do garoto, e seu jeito estranho de se esconder quando algo de errado acontecia. Abraçava-o assim que percebia, deitava-o em seu colo e contava algumas historinhas. Logo que ia para a cama, após ouvi-la mudo, passava um bom tempo em reflexões infantis; as mais sinceras filosofias de um recém humano em experimento na vida. A ele isto não passava de risíveis mistérios enquanto acreditava, ainda ingênuo, nos engenhos do acaso.

Um dia desses, antes de atingir a nebulosa zona liminar entre o sono e a consciência, pensou sobre coisas de sua vida em estado de partida. A respiração fraquejou diante de um estado de confusão que lhe veio à tona de súbito. Deveria ser mais um daqueles enigmas da infância, a acompanhar os diminutos brinquedos que carregava no bolso para a distração egoísta nos intervalos das aulas de piano. Tomou sua bombinha para desvanecer a tensão repentina, dilatando os brônquios, e dormiu. Horas depois, numa manhã clara, na metade da aula chata de religião, saiu desatinado. Era ela. Correndo sem olhar para trás atravessou por baixo das pernas magrelas do porteiro que não mais conseguiu alcançá-lo...

Minutos depois:

...Caido em uma calçada, em overdose, com uma bomba para asmáticos em mãos que já não sustentava pétala qualquer, agonizava em mal presságio. Estava cambaleando e não era visto por ninguém, invisível em sua dor. Pouco tempo depois - salvo por Ramon, que passava ali, um colega generoso que se esforçou em socorre-lo às pressas no quadro de sua bicicleta - estava numa maca, era todo cianose por conta da oxigenação insuficiente do sangue. Na emergência, as pessoas ao seu redor observavam aturdidos. O pânico se elevava insuportável; sufocante. Muito embargado, balbuciou: Doutor! Eu vou morrer?! Não, meu filho, não vai, fique calmo e evite falar. Vamos cuidar de você. E brincava com a criança, ao menos tentava. Deram-lhe algum calmante. Dormiu.

- Coloquem-no em balão de oxigênio, depressa! É caso de... rápido, rápido!

Primeiro despertar

Despertou em outra cidade, outro hospital, outro lar, outro quarto, outros amigos. Tudo por um clima melhor e urgente para os seus pulmões. Foi proibido de retornar à condição atmosférica anterior. De vez em quando era visitado por alguém da família que vinha de longe para vê-lo inchado, efeito das doses cavalares de corticoides que tomava em horário controlado todos os dias. Não podia fazer isso ou aquilo, era uma criança de vidro fino e todo cuidado era pouco. Aliás, era qualquer coisa menos criança - não lhe era muito permitido sair para brincar sem que fosse vigiado. Não faça isso, não faça aquilo. Logo passou a se incomodar com as conversas condolentes de seus parentes e vizinhos. Era o primeiro assunto que surgia assim que se fazia presente nas conversas na sala de estar.

- O coitadinho – dizia a mãe – não pode fazer quase nada.
- Deve viver entediado – respondia o tio – distante das outras crianças que brincam em correria por ai, tomam sorvete e se lambuzam em lama.
- Um condomínio tão grande e ele não pode desfrutá-lo, sinto pena dele!

A vontade dele era a de mandar todo mundo para algum lugar indesejado, embora se calasse com medo das óbvias repreensões.

Segundo despertar

Se nada podia fazer por conta de uma doença inflamatória teoricamente incurável que lhe impossibilitava o mundo, passava boa parte do tempo à janela de seu quarto, observando tudo o que acontecia lá fora, envolto em seu mundo, em sua imaginação, em sua prematura solidão. Ainda não havia feito amigos na nova e enorme cidade, como deve ser conquistado os amigos de infância de verdade. Quando acontecia a ocasião, era por intermédio de seus pais que preparavam de antemão os estranhos garotos – explicando-lhes a doença – que chegavam com caras e bocas hesitadas em seu quarto. Não sabiam o que dizer e o admiravam boquiabertos como se observassem o animal mais exótico do acervo de um zoológico.

Ironicamente, ele já não sabia distinguir a diferença entre o tratamento dado ao antropomórfico poodle da vizinha e aquele oferecido em casa. Era atenção em excesso, era fragilidade demais. De tanto não faça isso e não faça aquilo, seu futuro – questionava-se – seria reduzido a meros não-fazeres? Constrangido e comprimido a modestos prazeres, destes que não cansam os pulmões? O único lugar que tinha alguma chance de conhecer os estranhos com mais autonomia era nas aulas de natação, mas a professora era uma chata que sempre gritava quando ele parava os exercícios para conversar com algum novo amigo na beira da piscina.

- Deixe de moleza e continue, rapazinho!!

Poucos dias depois do início das aulas, chegou em casa e começou a chorar no colo da mãe pedindo para que o mudasse de escola, não queria mais ver a cara daquela bruxa da natação. Enquanto não chegava o dia desta sua alforria, inclinava-se contemplativo em sua janela e lá permanecia por horas em silêncio... Aconteceu no mês anterior ao seu aniversário. Haviam lhe dito que este não era um dos melhores momentos para uma pessoa. Ela passou de bicicleta, do outro lado da rua, provocando-lhe a última sensação de que poderia sair correndo - ao seu destino - feito um maratonista campeão. Desvencilhou-se da eterna vigilância, pegou sua bombinha e correu. Emancipou-se de sua enfadonha existência apressando a vida pela última vez. Sobrecarregou-se de corticoides, do maior dos prazeres, e partiu...


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