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quarta-feira, outubro 28, 2015

Frieza


...Abandonou o lixo, insatisfeito mais uma vez, e seguiu desnorteado. O vento da madrugada o espalha por toda a calçada enquanto o porteiro do prédio vizinho, grogue de sono, ensaia reclamar da sua sujeira: "Meu Deus! Todo dia é isso! Canuto passa aqui com esse rastro imundo! Ele ainda vai me prejudicar!", deixou pra lá. Vasculha a lixeira seguinte, arrebenta alguns plásticos, joga o lixo no chão. Investiga, cata e segue. Não encontra nada de útil. Ruma para a próxima. Ratos velozes se batem assustados; fogem da concorrência desleal. Acha um resto de pão com queijo. Cheira. Acho que ainda presta, diz. Joga no bolso para mais tarde. Segue. Garimpa um vinho de supermercado pela metade. Sorte. Bebe. Passa um casal-gourmet e brinca: que sede, hein? Ele nem olha. Pensa: porque você me deixou, minha véia... Chora. Enxuga-se. Segue. Um cão sem raça late de longe, é dele. O frio está apertando, balbucia. Não sei se aguento dessa vez, pensa. Preciso de um cobertor. Ei! Porteiro! Ei! Você é broder, me arruma um cobertor? Ei! Não tem, percebe o semblante hostil. Segue. Rasga mais uns sacos pretos, radinho de pilha, põe no bolso. Sorriso leitoso, terá música romântica antes de adormecer no papelão. Cobertor... nem sinal dele. Segue. Vira esquina; dobra esquina; vira esquina... Frio apertando. Chega num beco meio escuro, algumas lâmpadas quebradas, restos de comida, garrafas vazias e bostas no chão. Crack. Oferecem, recusa. Oferecem de novo, recusa. Insistem. Vão se foder! Calam-se. Ele é um otário de rua! Ouve de lá. Ele nem olha. Ali perto, uma porta se abre violentamente. Batidas de música eletrônica. Volta o silêncio notívago. Uns seguranças fortes e engravatados expulsaram dois playbas. Canuto observa. Brigam. Bravejam. Socam-se. Um assediou a mulher do outro, escuta. E a mulher ficou lá dentro, pensa. Dedo na cara, soco na cara. Rolam-se no chão, em cima da bosta. Uma janela se abre, surge um grito aborrecido do alto andar de um residencial: calem a boca, filhos da puta! Preciso dormir, seus merdas! Impensado, arremessa um objeto nos brigões. Erra. Acerta Canuto. Ele ri. Era só o que faltava, diz, o cobertor de lã caiu do céu. E segue.