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segunda-feira, novembro 02, 2015

Brinquedos


Cheguei da escola. Estava sem fome. Desde a noite passada, quando minha mãe me obrigou a ir para a cama, não paro de pensar no novo tipo de brinquedo de Pedro e Silas - falava mudo consigo mesmo. Eles são meus amigos aqui da vizinhança, filhos do temido coronel Bertioga. Eles são bem ricos, o povo vive falando. Gosto deles, dos irmãos. O pai eu tenho medo... Parece que é a última moda infantil nessa cidade pequena e distante de tudo, esse brinquedo. Dos ricos, eu acho. Painho sempre diz aos amigos de sua cidade natal que aqui é onde o vento faz a curva. Eu rio sempre. Tento imaginar a curva e nunca consigo. Meu pai é criativo. Acho que tive uma ideia. Estou com vergonha de pedir aos meus pais e ser contrariado. Gosto dessa palavra, con-tra-ri-a-do, minha língua trava... Nenhum amigo pobre tem, só os ricos, eles moram em casas gigantes. Se não tenho é porque devemos ser pobres também. Eu aprendi na escola como usar uma cola; no quartinho tem um saco com rodinhas de uma base velha de botijão. Basta achar uma madeira parecida com a deles; eu mesmo faço o meu. Escondido. Achou um pedaço de madeira compensada e começou a furá-la com uma chave de fenda. Os braços-gravetos não tinham tanta força, resolveu usar uma pedra até conseguir. Lá pelas tantas - já estava anoitecendo e seus pais logo chegariam do trabalho - concluiu metade do armengue. Encaixou precariamente duas rodas, reforçadas com cola de papel jorrada nos dois buracos retalhados em uma tábua frágil. Ficou receoso, fez tudo para que ninguém flagrasse a sua engenharia, e escondeu-a atrás de uns arbustos de flores cultivadas no jardim da sua casa. Esperaria a cola secar ao sol. Mas a pista já estava dada. Vou tomar banho e fazer o dever de classe, antes que minha mãe chegue e blá blá blá, dizendo que não quero nada com a hora do Brasil. Amanhã eu termino. O sol nasceu. Acordou um pouco mais tarde. Era sábado e ele não tinha aula. Os pais trabalham até o meio-dia. Tomou café e foi ao "esconderijo". Pouco não foi o espanto ao ver que tinha sumido o artefato. Desesperou. Gelou. Tentou disfarçar. Enfurnou-se no quarto pensando em ladrão. Será que alguém me viu? Voltou. Percebeu a terra úmida do arbusto. Acho que mainha descobriu tudo. Passou algumas horas envergonhado, ensaiando, recluso, o que deveria dizer no almoço. Imaginou-se no interrogatório dentro de um seriado que seu pai costumava ver. Sua mãe vestida de polícia, com o dedo em riste: "Betim, você derramou cola em minhas plantas? Confesse!!". A campainha tocou. Esperou. Tocou novamente. Foi lá. Oi, você é o Betim? Sim, mas meus pais não estão, quem é você? Pediram pra trazer algo. Deu as costas, foi ao carro e voltou com uma sacola bem grande. Aqui está escrito "para Betim", deve ser seu. Agradeci e fechei a porta. Afoito. Rasguei a sacola plástica, depois o papel de presente. Chorei.