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sexta-feira, janeiro 15, 2016

Banzés


"Tubarão! Desça aí, véi! Vai começar daqui a pouco, bora ali pegar uns sacos de areia para jogar lá na pista! Os caras já estão esperando e tem uma galerona já chegando!"

"Tô descendo, man, aguenta aí! Senta lá no banquinho do largo!"

Escutei do meu quarto, eu era vizinho de tubarão. Um cara alto, forte, bem articulado naquelas bandas, tirado a "bicho solto" [uma gíria que eu ainda estava decifrando, gostando e ensaiando ser também, ainda que sem muito sucesso]. Ele também gozava de uma reputação invejável entre as meninas do condomínio, concorriam entre si pelo seu afeto em contextos de mútuas falsidades que eu custava a entender. Ele, um solidário malandro, prezava por todas elas e desprezava qualquer forma de disputa por ele, não achava justo a monogamia e tentava convencê-las sem deixar na cara suas segundas intenções: a de contar vantagem para os outros como ele. Era um dos cacoetes masculinos para ganhar status entre os pares, um jogo viril e ambíguo de empoderamento. Elas riam sem reagir, ou fingiam que não reagiam porque achavam mais jogo ficar com ele mesmo assim, para acirrar a disputa feminil entre elas. A lógica era aparentemente a mesma: quem seria a mais desejada, a mais gostosa? Ou o feminismo ainda não havia chegado em nosso bairro, ou eu era apenas um bobinho indiscreto que ainda precisava aprender certas malícias da vida.


Eu vivia meus primeiros anos na capital. Ainda mapeava aquelas águas turvas e agitadas da complexa periferia soteropolitana. Mal tinha começado a navegar a remo em meu pequeno barco e já era vizinho do colosso mais temido dos mares naquele novo condomínio. Observando da janela, percebia um ar eufórico entre vários grupos de jovens em torno de um acontecimento ainda misterioso para mim. Eu não conhecia muita gente ali, ainda. Mas não demoraria a me meter em encrencas. A molecada era tão insana e de fácil imitação que certo dia eu me juntei a um grupo deles para simular uma briga generalizada entre nós no meio da rua, no momento em que passavam umas senhorinhas. Caminhávamos como amigos felizes até encontrar o momento ideal para o simulacro de pancadaria gratuita. As pegadinhas de Sílvio Santos eram uma grande influência. Numa dessas traquinagens de recém adolescentes uma viatura passou bem na hora e nos rendeu castigos variados em casa, puxões de orelhas, videogames proibidos, surras de alpercatas e outras punições bem piores.
Era um domingo, vinte horas, ruas desertas. Da cama, passo a ouvir barulhos de carros em alta velocidade se aproximando, distantes. Outros passam dentro do condomínio, lentos e barulhentos como se num pit stop estivessem. Não entendia bem aquilo, da janela. As pessoas, dos grupos, batiam no capô, gritando palavras de ordem, encorajando o motorista a fazer alguma coisa muito viril. Minutos depois, resolvi descer para saber o que acontecia, caminhava pelos cantos das paredes, na sombra, sem ser notado. Jovens da minha idade se amontoavam atrás das grades do campinho de futebol, numa parte com vista para a avenida. Julguei mais adequado me juntar a eles, pareciam curiosos e tão confusos quanto eu. Jovens adultos saiam de todos os lados carregando sacos cheios de areia, jogavam no asfalto espalhando-a até virar uma fina camada deslizante. De longe, tubarão, o "bicho solto", dava ordens técnicas para que tudo ocorresse dentro do planejado.
Ele me tratava bem, diferente de muitos outros, mas eu não gostava muito dele, leitor(a). Gostava, mas tinha inveja da qual eu não tinha muitas alternativas, a concorrência era desleal. Quem me tratava bem eu queria o mal e vice-versa. Eu tinha uma vigorante paixão platônica que havia me menosprezado em todas as minhas juvenis investidas. Mas ela gostava mesmo era do arquétipo marrento, enquanto eu era apenas um franzino excêntrico vindo do interior com sotaque acentuado de que muita gente ria. Começou a namorar com ele mas eu achava, ingênuo que era ao construir minhas fantasias, que ele sabia desse meu sentimento e desconsiderava. Mas logo cedo aprendi, inconsciente, os dez princípios de Maquiavel.
Carros começam a aparecer em velocidade, fazendo acrobacias. Pela primeira vez, via cenas parecidas com aquelas de esportes automotivos circenses da televisão. Mas era diferente, era transgressor, tudo parecia selvagem, desordenado. Dava medo. Dava adrenalina. Ora um, ora outro. Eram homens aos gritos, espalhando areia na pista enquanto os carros passavam acelerados. Não sei bem contar, mas eram muitos. Jovens aglomerados em êxtase ao redor da pista gritavam, urravam como lobos noturnos após cada acrobacia perigosa. Um ritual do qual eu desconhecia toda a lógica do transe. De repente, ocorreu uma correria generalizada lá fora. Um chevette rebaixado desgovernado, tentando fugir não sei do quê, atravessou a cerca centímetros acima da minha cabeça e capotou no campinho. Ao olhar para trás, vi apenas sangue e corpos desacordados e dilacerados. Se continuasse olhando teria o tal do "teto preto". Eram dos que estavam comigo. A gritaria tinha tomado outras proporções, a do salve-se quem puder. Corri como nunca até chegar em casa, sonhando lúcido com a paz desprezada do meu interior. Minha mãe gritava. Eu nada entendia. Corri para o quarto e me tranquei.

"Titela, você viu?! Tubarão se fodeu!"

"Có foi, man?!"

"Ele foi atropelado pelo camburão, passou um tempo no hospital, véi, e foi preso por perturbação da ordem e porte ilegal de armas, um negócio desses, man! Passou naquele programa policial com a cara toda lascada e algemado, ouvindo piadinhas escrotas daquela repórter gostosona, tá ligado? Todo mundo aqui só fala nisso. A mãe dele tá toda arrasada, véi, nem sai de casa mais."

"Diisgraça..."

"E os meninos mortos no campinho, broder!? Quem eram? O que aconteceu?"

"..."

Escutei essa conversa desagradável na roda e saí de fininho. Fui visitar Dominique. Achei que tinha chegado o meu momento de consolá-la, fingindo tristeza só para chorar no cangote dela, até roubar um beijo. No trajeto fui lembrando do que tinha observado de butuca pela janela do quarto escuro, fui rindo sozinho da cena ridícula. Sabe aqueles jovens que urravam como lobos? Também correram, claro. O problema é que nem todos moravam ali. Devido ao boca-a-boca, vinham muitos de outros bairros. Na correria louca, muitos corriam para onde o nariz apontava, sem rumo certo. Ao fundo do prédio havia árvores rente a uma ribanceira, na qual dezenas deles, apavorados, ou subiam, ou, na falta de vaga em cima, pulavam de cabeça abaixo como se ali fosse uma piscina. E lá ficavam tempo que fosse sem dar um pio. "Nessas horas, o cu não passa nem vento", diz um ditado popular baiano diante dos medos e calamidades. Os policiais, fortemente armados, entraram no condomínio e vasculharam tudo durante alguns minutos, ou fingiram para dar apenas satisfação ao comandante. Muitos deles moravam ali. Fazendo buscas sob algumas árvores, bastava um forte chute naqueles troncos para cair uma penca de miseravão. Isso aconteceu apenas algumas vezes. Tomei um tapa na cara, foi agressão à primeira vista. Tratei de tentar esquecê-la, assim como os dez princípios, para cuidar dos meus novos traumas.