"O inferno não são os outros, pequena Halla. Eles são o paraíso, porque um homem sozinho é apenas um animal. A humanidade começa nos que te rodeiam, e não exatamente em ti. Ser-se pessoa implica a tua mãe, as nossas pessoas, um desconhecido ou a sua expectativa. Sem ninguém no presente nem no futuro, o indivíduo pensa tão sem razão quanto pensam os peixes. Dura pelo engenho que tiver e perece como um atributo indiferenciado do planeta. Perece como uma coisa qualquer. [...]
Estamos sempre à conversa com deus. A solidão não existe. É uma ficção das nossas cabeças. [...]
Os homens sós percebem que há alguém na água, na pedra, no vento, no fogo. Há alguém na terra. [...]
Sobre a beleza o meu pai também explicava: só existe a beleza que se diz. Só existe a beleza se existir interlocutor. A beleza da lagoa é sempre alguém. Porque a beleza da lagoa só acontece porque a posso partilhar. Se não houver ninguém, nem a necessidade de encontrar a beleza existe nem a lagoa será bela. A beleza é sempre alguém, no sentido em que ela se concretiza apenas pela expectativa da reunião com o outro [...] Sem um diálogo não há beleza e não há lagoa. [...]
Senti-me muito feia por andar ainda atrás da beleza. Era tão diferente de fugir. O meu pai desentristeceu-me. Prometeu que leríamos um livro. Os livros eram ladrões. Roubavam-nos do que nos acontecia. Mas também eram generosos. Ofereciam-nos o que não nos acontecia. [...]
A poesia é a linguagem segundo a qual deus escreveu o mundo. Disse o meu pai. Nós não somos mais do que a carne do poema. Terrível ou belo, o poema pensa em nós como palavras ensanguentadas. Somos palavras muito específicas, com a terna capacidade da tragédia. A tragédia, para o poema, é apenas uma possibilidade. Como um humor momentâneo. Eu perguntei: posso chamar a vida de poema. E ele respondeu: podes chamar a vida de poema. Ou podes chamar de normalidade. A vida é a normalidade e deus é a normalidade. O poema é normal. [...]"
Trechos de A Desumanização,
valter hugo mãe
"Um homem não é independente a menos que
tenha a coragem de estar sozinho"
Halldór Laxnes, Gente Independente
(Abre o Romance)