Páginas

sexta-feira, janeiro 08, 2016

Espíritos


Entre essas quatro paredes rebocadas, uma penumbra. Embaixo da escrivaninha velha dois olhos de um corpo recôndito brilham esverdeados numa luz própria. Fala comigo qualquer coisa enquanto ouço em meu discman o "quatro coiotes" de uma banda antiga de rock nacional. "Que disco bom!", penso, "eu ainda era criança na época". "Mas você precisa sair um pouco mais", diz-me os olhos reluzentes em tom de provocação conselheira. O chão de cimento queimado já pouco à vista, escondendo-se entre papéis arremessados na forma de bolinhas amassadas, bolinhas de poesias tortas inutilizadas, bolinhas de contos sobre solidões tartufas desencorajam a pisada firme e convidam a reclusões voluntariosas. Não me atrevo a pisar em minhas próprias criações, ainda que fúteis, para sair carnavalesco em busca de aventuras pessoais que teimam em me frustrar numa cidade de ousadias intimidadas. "Essa cidade não tem poesia, não tem prosa", resmungo comigo mesmo enquanto o disco se aproxima do fim. "Na cidade há apenas artistas de carreiras...". É justo o que tenta me convencer, em certa madrugada, o telejornal local, através de seu principal crítico de arte, ambos arredios de suas próprias vizinhanças. "Mas você precisa sair", reitera os olhos enigmáticos e fantasmagóricos na nuvem escura embaixo do móvel velho. Certa feita, decidi obedecer. Flanei por quatro, cinco bairros, talvez seis ou sete, ou oito. Dia ou noite, nada reconheci. Tudo era estrangeiro e insignificante. Ruas hostis, barulhos de carros e motos raivosos, ruminantes sem faces fazendo todo tipo de coisa ordinária, muitas vezes em fila, com poemas de dívidas em mãos, atrasados. Correrias capitais, o mercado rindo de seus operadores fundamentalistas mais ignorantes possíveis.

As caminhadas passam a ocorrer mais vezes, ainda que sob intermitências misantrópicas infundadas, ou melhor, ainda desconhecidas. Numa dessas situações resolvi sair para comprar um chuveiro, dando um fim mais ameno a uma semana inteira de banhos frios em filete d'água de cano. Na volta para casa, passei por uma livraria super discreta. Perto de casa, passei por ela muitas vezes. Indiferente, sempre protelava. Resolvi entrar, tomado por uma decisão súbita. "Mas você precisa sair...", lembrou, "ah! Vou entrar logo nessa zorra!". Pouco tempo depois, não queria sair mais. Descobri uma parte significativa de minha cidade a partir desse desvio de roteiro, daquela portinha minúscula tão menosprezada pela minha falta geral de avidez. Ainda não sabia, em verdade, e levei laborioso tempo para que essa descoberta resultasse de fato na descoberta. Esse desvelo ocorreu aos poucos, enquanto avançava naquelas leituras locais oferecidas ali como se novas drogas potentes fossem. "Leia isso", "leia aquilo", "eles são todos daqui". Impressionado que fico numa primeira mirada diante do abismo, resolvi aceitar alguns exemplares daqueles desconhecidos. Aquele tráfico a preços módicos me agradou - em poucos meses já era o novo adicto traçando paisagens junto a outras almas igualmente vorazes e incorrigíveis.
Certo dia percebi, quase epifânico, que havia reduzido as bolinhas no chão daquele quarto escuro. Estranhei. Nunca teve quem o limpasse. A lisura do chão de cimento queimado já ameaçava pés molhados ao sair do banho consertado. A estante de livros também estava um pouco mais cheia e organizada, reparei. Eram ótimos amigos, ainda que boa parte daqueles autores nem suspeitassem da minha modesta existência. Da última vez que fui à quitanda reconheci a feirante da minha barraca prediletas de frutas - "Depois de tanto tempo eu agora conheço você, quem diria dona Maria...". Ela tinha produzido um bestseller local. Trocamos contatos mais intensos desde então. Da última vez que fui cortar o cabelo, reconheci o sujeito que fazia a barba, ele tinha produzido um disco importante mencionado por um autor que experimentei. Conversamos. Uma vez fui multado no trânsito, o guarda, em suas folgas, sempre estava lá, com sua companheira, trocando palavras na livraria com os viciados mais afobados. Ele não me dispensou da multa, of course. Passei a compreender melhor. Na semana seguinte, ao sair para sanar dívidas de longa data, a fila parecia correr enquanto conversava com uma conhecida, poeta endividada, sobre os rumores de novas substâncias prometendo outras quimeras.
Diante destes tantos sinais, imaginei que o mundo estaria ficando pequeno, refleti durante uns dias em meu niilismo cada vez mais espaçado e inocente. Estava dominado por novas provocações. Essa misteriosa redução mundana me deixou tão assombrado que eu intimei para conversar uma amiga de longa data, sagaz em quase todos os meandros dos seres erráticos. Telefonei, chamei para sair, ela aceitou saudosa. "Por onde você andava, menino?" A noite rendeu... Ela me convenceu, em suma, de que não era o mundo que estava ficando menor, era eu quem estava expandindo e me aproximando das fronteiras que sempre estiveram ali, esperando o despertar dos incautos. Pagamos a conta do bar e fomos à minha casa, queria mostrar a ela os olhos reluzentes do meu conselheiro. Pretendia provar que a acusação dela era injusta e que eu não estava tão sozinho como ela acreditava. Ela se decepcionou com essa história maluca, nada viu além de um móvel velho. Realmente, passados alguns meses, ele desapareceu sem deixar vestígios. "Isso nunca me ocorreu". Ela, minha amiga de longa data, me chamou para sair novamente e, em nossa caminhada, uma nova ruminante nunca dantes vista na cidade, acenou para nós, se aproximou e me cumprimentou, "Olá! Acho que te conheço!", comentou algumas novidades e seguiu adiante, em perdição oposta à nossa. "Você a conhece?", perguntou minha amiga, "nunca a vi antes, mas gostei muito de saber que ela leu e desapareceu".